Considerações críticas acerca do regime jurídico dos servidores no Brasil. Embate entre o patrimonialismo e o sistema de mérito

AuthorFrancisco De Q. B Cavalcanti
ProfessionProfessor Titular de Direito Administrativo e Diretor da Faculdade de Direito da UFPE
Pages132-163
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Considerações críticas acerca do regime
jurídico dos servidores no Brasil.
Embate entre o patrimonialismo
e o sistema de mérito
Francisco de Q. B cavalcanti*
Considerações gerais
O regime dos Servidores públicos no Brasil representa um significativo
exemplo do conflito entre conquistas republicanas e democráticas e constantes
e por vezes bem sucedidas investidas do modelo patrimonialista que secular-
mente prejudica o desenvolvimento das instituições públicas neste país.
A Constituição de 1988 caracterizou-se, no tocante à Administração Públi-
ca, pela ampliação da normatização constitucional, quer quanto às regras, quer
quanto aos princípios. Pode-se afirmar da ocorrência de um processo de “cons-
titucionalização do Direito Administrativo” fruto do denominado neoconstitu-
cionalismo. Tal fenômeno de constitucionalização não ocorreu, isoladamente,
em relação a este relevante segmento do direito público. Em verdade, a Cons-
tituição de 1988 caracterizou-se pela excessiva ampliação da tutela direta, che-
gando a doutrina a defender a partir dessa modelagem, a existência de um
direito administrativo constitucional, um direito tributário constitucional, um
direito do trabalho constitucional e até em relação àquelas áreas do direito his-
toricamente rotuladas como direito privado, de um direito civil constitucional,
dentre outros. Vários fatores, inclusive, e sobretudo, a preocupação com o risco,
pelos exemplos pretéritos, de violação de direitos, fez com que o constituin-
te entendesse que “constitucionalizando direitos”, os ampliaria e reforçaria as
* Professor Titular de Direito Administrativo e Diretor da Faculdade de Direito
da UFPE.
Francisco de Q. B cavalcanti
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defesas contra indevidas violações. Luís Roberto Barroso, bem destaca esse
quadro, lembrando que a Constituição de 1988:
tem a virtude suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira
e de ter contribuído decisivamente para a consolidação do mais longo
período de estabilidade política da história do país. Não é pouco. Não se
trata por suposto, da constituição de nossa maturidade institucional. É
a constituição de nossas circunstâncias. Por vício e por virtude, seu tex-
to final expressa uma heterogênea mistura de interesses legítimos dos
trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, acumulados
com paternalismos, reservas de mercado e privilégios corporativos. A
euforia constituinte –saudável e inevitável após tantos anos de exclusão
da sociedade civil– levaram a uma Carta que, mais do que analítica, é
prolixa e corporativa.1
Infelizmente, a realidade tem evidenciado que, muitas vezes, não é com
a constitucionalização de direitos individuais e coletivos que esses passam a
ter maior imperatividade, tal só se obtém ao se assegurar mecanismos para
a obtenção de ganhos de efetividade e de eficácia. No tocante ao regime dos
servidores públicos nota-se uma surda e ferrenha luta entre a pretensão de
transformá-lo em algo republicano e democrático e, de outra banda interpre-
tações que visão buscar caminhos, alternativas para preservação de rotas de
apadrinhamento, indicações por critérios patrimonialistas, etc.
A Constituição brasileira de 1988 discorre amplamente sobre a Admi-
nistração Pública, com censurável detalhamento e contendo um verda-
deiro estatuto dos servidores públicos. Não obstante, contém algumas
virtudes como a dissociação da função administrativa da atividade de go-
verno e a enunciação expressa de princípios setoriais do direito adminis-
trativo, que na redação original eram os da legalidade, impessoalidade,
moralidade e publicidade. A emenda constitucional no. 19, de 04.06.98,
acrescentou ao elenco o princípio da eficiência.2
Esse outro aspecto relevante no tocante à disciplina constitucional da Ad-
ministração Pública, quer no sentido subjetivo, quer no sentido objetivo de ati-
vidade de administrar, exercida diretamente pelo Estado, ou por entes privados
para os quais o exercício da atividade tenha sido transferido, foi a inserção no
texto constitucional de um amplo elenco de princípios explícitos, como os da
legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, elenco que viria a ser am-
pliado com o princípio da eficiência (introduzido pela EC no.19) e da economici-
1 Barroso, Luís Roberto: “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direi-
to”, Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, vol. 28, núm. 60,
Porto Alegre, julho/dezembro 2004, p. 55.
2 Barroso, Luís Roberto: ob. cit., p. 54.
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dade. Além desses, vários outros princípios têm sido entendidos como implíci-
tos, extraíveis do texto constitucional, quer pela doutrina, quer pelos órgãos no
exercício da jurisdição constitucional, sobretudo o Supremo Tribunal Federal,
cuja importância, como órgão central do sistema de jurisdição constitucional,
foi sendo paulatinamente ampliada.
No tocante à principiologia da Administração Pública, que aqui se invoca “en
passant,” nesses quase trinta anos, uma das mais relevantes alterações da CF/88
foi a introdução pela EC 19/98 da eficiência como princípio constitucional ao
lado dos demais existentes desde a redação original de 1988. Esse foi, inclusive,
invocado, como fundamento para reformas ocorridas em relação ao regime dos
servidores públicos. Ressalte-se, entretanto, que, vários dos dispositivos cons-
titucionais introduzidos visando possibilitar reforma na Administração Pública
para concretização dos princípios constitucionais não tiveram efetividade pela
não aprovação das leis instrumentais. Nesse sentido, cite-se, como exemplo, a
alteração do art. 41 do texto constitucional, com a introdução do inc. III, para
prever de ruptura do vínculo do servidor público estável, por insuficiência de
desempenho, em avaliação periódica, com procedimento regular, assegurada
àquele ampla defesa e o contraditório. Essa alteração, introduzida há dez anos
pela EC no.19/98, ainda hoje depende da edição de lei complementar ainda por
vir. Na mesma linha, em inúmeros outros casos, tem ocorrido a inércia, a omis-
são do legislador. Cite-se, p. ex., que a EC no.19/98 veio a prever, com a nova
redação dada ao Art. 27 do ADCT que no prazo de 120 dias da promulgação
dela (ocorrida em 04 de junho de 1998) o Congresso elaboraria lei de defesa
do usuário de serviços públicos. Passados tantos anos, lei alguma foi aprovada.
Essa inércia do Parlamento brasileiro vem sendo, objeto de críticas fundadas
de relevantes segmentos da sociedade brasileira e de atuação substitutiva de
outros Poderes.
Muitos dos problemas que afligiam a Administração Pública, como o patri-
monialismo sob várias facetas: spoil system em relação à investidura em relação
aos cargos comissionados, falta de profissionalismo, excesso de terceirizações
etc. ainda persistem. Aos poucos, entretanto, avanços vão se constatando. Não
se pode desconhecer a ocorrência de relevantes alterações na disciplina consti-
tucional da Administração Pública brasileira, o que não significa afirmar que as
mudanças, necessariamente significaram melhoria do regramento inicial.
Mister se reconhecer que as relevantes alterações na disciplina constitucio-
nal da Administração Pública no período 1988–2008 tiveram um móvel, sobre-
tudo econômico. A ideologia neoliberal, a influência do denominado consenso
de Washington, tiveram importante papel na motivação das mudanças ocorri-
das que alteraram, inclusive, o perfil do Estado, retraindo a participação esta-
tal como agente da atividade econômica e também do terceiro setor, passando
aquele, no tocante ao setor produtivo a privilegiar a atividade regulatória, des-
estatizando parcela significativa do setor produtivo que se encontrava em poder

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